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Socióloga Berenice Bento explica por que a transexualidade deve ser despatologizada

quinta-feira, 16 de abril de 2009

"Dispositivo da transexualidade"


Patologizada pelas ciências biomédicas e pela Psiquiatria, a transexualidade até hoje figura como transtorno mental na classificação de doenças da Organização Mundial de Saúde (CID-10) e na Psiquiatria (DSM). Em seu livro A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual (CLAM/Editora Garamond), lançado no dia 24 de agosto, durante o Congresso da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), a socióloga Berenice Bento (UnB) busca desconstruir o conceito de transexualidade como doença, apresentando-a como um conflito identitário que contraria as normas de gênero. “Penso que a transexualidade é um desdobramento inevitável de uma ordem de gênero que estabelece que a inteligibilidade dos gêneros está no corpo”, afirma ela nesta entrevista.

No livro, versão de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) em 2003, a socióloga analisa a experiência transexual a partir de uma perspectiva teórica divergente das abordagens patologizantes tradicionais. A obra nos informa como os sujeitos sofrem quando tentam construir suas identidades mediante deslocamentos. Para a autora, a patologização da transexualidade está inserida em um campo mais amplo – a medicalização das condutas sexuais. “Sabemos que não existe nenhum exame clínico ‘objetivo’ para definir quem é o/a ‘transexual de verdade’. Então, como se produz um diagnóstico?”, questiona.

Durante três anos, Berenice entrevistou transexuais no Brasil e na Espanha (em Madri, Valência e Barcelona). Ela lembra que o depoimento de uma de suas entrevistadas resume com maestria o que buscou discutir ao longo do livro: “Ela disse: ‘Imagine que você está em um quarto. Chega alguém fecha a porta e te diz que você vai ter que escolher alguma coisa que está dentro de uma gaveta. Tem a ‘gaveta homem’ e ‘gaveta mulher’, mas também tem a ‘gaveta gay’ e a ‘gaveta lésbica’. E você não encontra nenhuma gaveta para meter-se. Mas eu tenho que me definir. Então me defino uma mulher transexual lésbica. Mas não me sinto totalmente mulher, não sei bem o que significa ser transexual e agora estou lésbica. Onde está o problema? Durante muito tempo eu pensei que eu era o problema. Hoje eu sei, e isto pelo menos me dá um pouco mais de paz, que o problema está lá fora’.




Sua abordagem apresenta a transexualidade como um conflito identitário que contraria as normas de gênero, e não como uma patologia, como ela é tradicionalmente tratada pelas ciências biomédicas e pela psiquiatria. Como a sra. problematiza a legitimidade do saber/poder biomédico na patologização dessa experiência?

A patologização da transexualidade está inserida em um campo mais amplo: a medicalização das condutas. Sabemos que não existe nenhum exame clínico “objetivo” para definir quem é o/a “transexual de verdade”. Então, como se produz um diagnóstico? Quem poderá fazer a cirurgia de transgenitalização? E a pergunta que está por trás de cada olhar dos profissionais de saúde encarregados de produzir um diagnóstico: Será que ele/a é um/a transexual de “verdade”? A questão que enfrentei na minha pesquisa foi precisar o que as equipes médicas entendem por “transexual verdadeiro”. A cada definição, via diante de mim as normas de gênero operando os discursos e fornecendo as bases para a produção dos relatórios com o parecer final com o diagnóstico. Se uma “mulher de verdade” é passiva, emotiva, dependente, heterossexual, logo uma mulher transexual deverá atualizar esses atributos. A solidez da suposta singularidade da transexualidade desfazia-se no ar. O que opera o olhar da equipe médica sobre o corpo e as performances das pessoas que demandam cirurgias de transgenitalização, são mesmas que definirão as verdades para as mulheres XX e para os homens XY.

A partir do estudo da experiência transexual pude compreender a força regulatória das normas de gênero. Quando digo “norma” refiro-me à capacidade de produção de coerção, punição. Sem dúvida, a legitimidade e consenso que estas normas conseguem, tem como fundamento a crença de que há uma natureza que produz os desejos em corpos dimórficos. Os guardiões dos segredos dos desejos desses corpos são os médicos e os profissionais da saúde mental. No entanto, com a transexualidade esse discurso se esfarinha. É o gênero que conduzirá as mudanças corporais e é com os mapas produzidos socialmente para definir o que é ser homem e mulher, que a equipe médica deverá se orientar. O problema é que estas normas definem binariamente, dicotomicamente a identidade de gênero e, embora as pessoas transexuais estejam abrindo fissuras nestas normas, a equipe médica tentará, ao longo do tempo em que a pessoa transexual deve obrigatoriamente freqüentar o hospital, pôr ordem, cortar as ambigüidades, fazer a assepsia de gêneros.

Então, ao problematizar a visão patologizante das equipes médicas, acabo encontrando as normas de gênero. Penso que a transexualidade é um desdobramento inevitável de uma ordem de gênero que estabelece que a inteligibilidade dos gêneros está no corpo. Dois corpos, dois gêneros, uma sexualidade. Assim, o masculino e feminino seriam a expressão ou formulação cultural da diferença natural dos sexos. É claro que a diversidade e a multiplicidade de articulações identitárias extrapolam e minam essa concepção limitada dos gêneros.


E como se produz a idéia de doença, de identidades transtornadas?


Quando se localiza exclusivamente no indivíduo a fonte explicativa para a emergência do conflito identitário. Portanto, o passo seguinte a esse é pensar que se pode “curá-lo”, que, mediante as intervenções cirúrgicas a pessoa transexual estará mais próxima de um/a homem/mulher normal. Lembro de uma passagem do livro de Ramsey, um dos muitos operadores do dispositivo da transexualidade, onde afirma que mesmo depois de passar pelo processo transexualizador a pessoa transexual jamais será normal. Muito triste. Ou seja, não há esperança nenhuma para as pessoas transexuais nesse sistema de gênero. O que temos que fazer? Qual o caminho? Denunciar, explicitar, discutir os limites de uma ordem de gênero que exclui qualquer possibilidade de trânsito, de deslocamento. Retirar o indivíduo do foco e apontar nossas energias para compreender genealogicamente como se organizam os discursos que limitam a categoria humanidade a duas possibilidades excludentes: ou você tem pênis ou vagina. Ou você é mulher ou é homem. Ou você é masculino ou feminino, mas sejamos todos heterossexuais. Nada de ambigüidade. Qual o problema de uma pessoa XX negar o gênero atribuído e reivindicar o pertencimento a outro gênero? Qual o problema de mulheres terem pênis? Homens terem úteros? Esta plasticidade dos corpos, as identidades retorcidas, fragmentadas, é inconcebível para o poder médico. Nada se pode fazer contra o império dos hormônios, a não ser, aceitar seus desígnios.

Despatologizar as identidades significa desnaturalizá-las, apontar o conteúdo ideológico dos discursos médicos e dizer claramente que, em nome da ciência, se está garantindo as normas de gênero a partir de uma brutal violência contra aqueles que são definidos, catalogados, classificados, como transtornados, disfóricos, pervertidos, psicopatas, enfim, sujeitos que só merecem existir nos compêndios do saber médico.

Ao pretender desconstruir a transexualidade como categoria de doença, a sra. se contrapõe aos modelos tradicionais que compartilham a idéia da transexualidade como enfermidade. As explicações patologizantes supõem que o conflito do(a) transexual está nele(a) mesmo. Como a sra. se coloca diante deste argumento?


Se você pensa que a fonte explicativa do conflito está exclusivamente no sujeito, produz-se uma operação perversa à medida em que as normas de gênero são preservadas e se tenta ajustar o sujeito às mesmas. Todo o meu esforço argumentativo foi inverter essa lógica. Afirmo que há um profundo processo de despolitização à medida que o sujeito que vive o conflito entre corpo e gênero não consegue sair da armadilha da medicalização das condutas. Daí a necessidade que tive de dedicar parte de minhas reflexões ao processo histórico de construção dos corpos pensados como naturalmente dimórficos e heterossexuais.

Muitos argumentam que a transexualidade sempre existiu. Acho que fazem confusão. De fato, há inúmeros relatos de trânsitos entre os gêneros, de mulheres que se passavam por homem, mulheres que se tornavam homens. O lugar que outras sociedades reservam para estes trânsitos nada tem a ver com o espaço hospitalar ou com a discussão de identidade disfórica, tampouco existia um catálogo mágico, o Código Internacional de Doenças, que tem explicação para tudo e não deixa escapar nada que esteja fora da ordem. Se retiro o conteúdo histórico, não consigo perceber as disputas de poder para se definir o normal e o patológico. É nesse sentido que afirmei ser necessário politizar a reflexão sobre a transexualidade, o que significa mudar o foco de análise dos espaços confessionais e clandestinos das clínicas para a explicitação da organização do sistema de gênero. Cada vez acredito mais que é no espaço do ativismo político que as pessoas transexuais vão conseguir encontrar forças para se contrapor ao peso esmagador da lei de gênero.

É por isso que analiso a experiência transexual a partir de uma perspectiva teórica divergente da de Stoller e da de Benjamin. Tento encontrar nas relações sociais os mecanismos mediante os quais a sociedade constrói os corpos-homem e os corpos-mulher. A produção dos gêneros e da heterossexualidade é marcada por um terrorismo contínuo. Há um heteroterrorismo a cada enunciado que incentiva ou inibe comportamentos. Se um menino gosta de brincar de boneca, lá estarão os heteroterroristas: “Pare com isso. Isso não é coisa de menino” O gênero serve para demonstrar, visibilizar que o corpo é heterossexual. Qualquer confusão nesse mundo dicotomizado poderá indicar um futuro homossexual. Ora, se somos o que nossos corpos definem, se nosso futuro já está inscrito, porque tanta obsessão das instituições sociais em reiterar de múltiplas formas que somos o que a natureza determina, que são os hormônios os responsáveis por nossos desejos? Vamos deixar a natureza fora disso. O que há claramente é uma disputa acirrada entre discursos. Acontece que o discurso médico encontra a legitimidade por ser o portador da verdade, neutro, o que descreve a natureza, quando, de fato, produz a natureza em sua imagem e semelhança. Podemos ver a eficácia desse discurso quando produz nos sujeitos a incômoda e terrível certeza de que não se é normal.

Não existe corpo in natura, livre de investimentos e expectativas sociais. Já nascemos cirurgiados e quando uma pessoa afirma: “quero reconstruir meu corpo, quero uma cirurgia de transgenitalização”, está afirmando implicitamente que a primeira “cirurgia” (a que definiu o gênero a partir da genitália), não obteve sucesso. Dessa forma, quando localizo nas instituições sociais e nas relações sociais delas decorrentes a explicação para a gênese da experiência transexual, inverto a lógica: são as normas de gênero que possibilitam a emergência de conflitos identitários com essas mesmas normas.

De que forma a sra. lida, em sua obra, com o que chama de “dispositivo da transexualidade”, que normatiza e coloca a heterossexualidade como matriz de inteligibilidade dos gêneros?


Aproprio-me do conceito de dispositivo da sexualidade de Foucault para tentar explicar a estrutura do discurso médico para a transexualidade. Há dois momentos distintos no meu trabalho. No primeiro, vi como este dispositivo se estrutura teoricamente. Há várias pesquisas que tentam encontrar uma explicação para a origem da transexualidade. Cheguei a dois núcleos explicativos: um de caráter biologizante e outro mais vinculado aos discursos psicanalíticos. Estes núcleos são exemplarmente representados pelo endocrinologista Harry Benjamin e pelo psicanalista freudiano Stoller Talvez você pense: como é possível afirmar que perspectivas tão distintas possam constituir um dispositivo? Quais os pontos de unidade entre os dois núcleos? De fato, me parecia muito estranho, inicialmente, ver endocrinologistas e psicólogos trabalhando juntos em equipes médicas, nos programas de transgenitalização, pois há ancoragens teóricas distintas entre esses núcleos. Os encodrinologistas acreditam que há uma causa hormonal que explica a transexualidade. Fazem pesquisas e mais pesquisas com restos cerebrais de pessoas transexuais, principalmente no hipotálamo. Esperam com ansiedade a hora em que a ciência revelará para o mundo a origem da transexualidade. Os psicólogos, por sua vez, acreditam que mediante a escuta terapêutica poderão demover a idéia da intervenção cirúrgica em partes do corpo consideradas por eles como fundamentais na construção do sujeito.

No entanto, há um fio condutor que amarra estas duas abordagens: as mudanças corporais seriam para assegurar a prática da heterossexualidade. Por mais que se tente afirmar que o conflito identitário da transexualidade reside no gênero e não fundamentalmente na sexualidade, o dispositivo lerá esta queixa da seguinte forma: se ele/a mudou de gênero é necessário reconstruir as genitálias para que recupere a unidade entre corpo/gênero/sexualidade. Lembro-me que um dia comentei para uma psicóloga que há pessoas transexuais que se definem como gays e lésbicas. Ela parou e me olhou com olhos descrentes: “Isso é impossível! Que aberração!”

Para que seja um membro aceito no novo gênero é necessário que a sexualidade seja heterossexual. Por essa abordagem, gênero e sexualidade estão colados. O gênero explicita a sexualidade. Então, quando uma mulher transexual chega em um programa de transgenitalização e diz: “quero me operar”, a equipe médica entenderá da seguinte forma: “Vamos devolver a unidade, a coerência a este corpo, pois, se ela é mulher precisa de uma vagina para ser penetrada por um pênis.“

No segundo momento, analiso o dispositivo da transexualidade operando no espaço hospitalar. Pinço fragmentos do cotidiano das pessoas transexuais no hospital, vejo como as provas e o longo processo que devem se submeter servem para produzir a certeza na equipe médica de que aquele corpo não carrega nenhum sinal de homossexualidade.

Muitos argumentam que, ao reivindicar a transgenitalização, a pessoa acaba por reforçar o dimorfismo homem-mulher. Ou seja, segundo eles, a transexualidade não estaria na verdade reafirmando o êxito das normas de gênero?

Discordo. Em primeiro lugar vejo que a experiência transexual potencialmente provoca fissuras nas normas de gênero. Conforme disse anteriormente, quando uma pessoa transexual afirma: “Sou um/a homem/mulher em um corpo equivocado”, está revelando todo o caráter ficcional das normas de gênero. Ou seja, o corpo que deveria conferir sentidos identitários para o gênero, simplesmente não funciona. Em segundo lugar, nem todas as pessoas transexuais têm os mesmos desejos de reconstrução dos seus corpos. Após muita luta do ativismo transexual, o Reino Unido reconheceu o direito das pessoas transexuais mudarem os documentos sem terem que se submeter à cirurgia. A Espanha também aprovou a Lei de Identidade de Gênero que desvincula os dois momentos do processo transexualizador. De fato, há muitas pessoas que não querem fazer a cirurgia de transgenitalização e isso não o/a desqualifica como mais ou menos mulheres ou homens.

Acho que esta representação da pessoa transexual como reprodutora dos modelos hegemônicos para os gêneros deve-se, em boa medida, à literatura médica, que considera exclusivamente o que foi dito na consulta e a partir daí fixou e cristalizou a identidade transexual. O que os operadores da saúde esqueceram é da negociação que está posta no momento da consulta. A pessoa transexual precisa de um laudo e, com toda razão, irá negociar com a definição hegemônica para os gêneros. Não significa que eles/as mentem, mas vão buscar nas verdades disponibilizadas socialmente os roteiros que irão atualizar quando estão diante do poder médico. Collet Chiland, uma psicanalista francesa, afirmou que os/as transexuais estereotipam as mulheres. Quando ela afirma isso acaba produzindo uma visão “estereotipada” das pessoas transexuais. É como se as/os mulheres XX/homens XY tivessem a verdade original para os gêneros e que as experiências trans não passassem de pastiche.

O livro se propõe a levantar questões relativas ao direito – direito à realização da cirurgia fora do dispositivo da transexualidade e direito à identidade de gênero. No âmbito dos direitos humanos, que reivindicações, por parte dos transexuais, a sra. identificou em seu trabalho de campo?

Quando afirmo que é necessário tirar o poder do dispositivo e dos seus operadores em decidirem se uma pessoa é transexual, em produzirem um veredicto final: “você é transexual, pode operar”, não estou negando a importância da cirurgia. Convivo diariamente com amigas transexuais que lutam há anos para fazer a cirurgia. Não é uma questão menor. Muitas/os já se mutilaram, outros se mataram por terem uma relação de profunda abjeção com os genitais. Acredito que os gestores públicos da área de saúde precisam ampliar e problematizar o significado de uma saúde pública humanizada, pois não demorarão muito a perceber que as cirurgias de transgenitalização são fundamentais.

O que defendo no âmbito dos Direitos Humanos é a necessária participação das pessoas transexuais tanto na formulação das políticas públicas quanto nas equipes e programas de transgenitalização. Acho que caminhamos para isso. Vejo com grande entusiasmo a crescente organização de coletivos transexuais, de militantes valorosas/os que têm provocado uma profunda reflexão entre feministas, lésbicas, gays, travestis sobre questões referentes às políticas identitárias. A recente organização do Coletivo Nacional de Transexual foi um passo fundamental. Acompanho algumas listas de discussão na Internet e é incrível o conhecimento do corpo que é compartilhado nesses espaços virtuais. Muitos coletivos de transexuais têm um profundo conhecimento e podem dialogar em pé de igualdade com os profissionais da saúde. A discussão sobre os protocolos deve contar com a presença de pessoas transexuais. Esse é um caminho para se pôr um fim ao processo de infantilização que os/as transexuais são submetidos nos Programas de Transgenitalização. A infantilização é irmã gêmea da patologização. “É para seu bem”, “você não está preparado/a”, “vamos fazer mais terapia”, “vamos repetir os testes”, “você não é transexual”. Me parece um absurdo, um abuso de poder deslegitimar permanentemente as falas das pessoas transexuais, que devem a todo tempo provar que são o que afirmam ser para conseguirem realizar as cirurgias e a mudança do prenome e sexo nos documentos.

Discutir a transexualidade na perspectiva dos Direitos Humanos não se resume a defender as cirurgias, ao processo transexualizador, à lei de identidade de gênero que desvincule as mudanças nos documentos da realização das cirurgias, à políticas de inclusão social ampla (emprego, escola, lazer, casamento, família...), o combate à transfobia. Discutir a transexualidade na perspectiva dos Direitos Humanos é reconhecer de forma intransigente a capacidade dos sujeitos que vivem a experiência em terem voz, de serem sujeitos que formulam e significam suas vidas.

FONTE:http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1558&sid=43

No meio do caminho tinha um Muro...

No meio do caminho tinha um Muro...
(por Dorothea Lavigne- estudante de Historia da UFPR)

Ha momentos, na longa caminhada humana, e mais exatamente na sua contemporaneidade, que costumam ser abandonados, uma vez julgados e condenados pelo tenebroso Tribunal da Historia, e seus heróis, principalmente os anônimos, punidos por aquela à qual Camões designou em sua obra magistral como a "Lei da Morte", a saber, o esquecimento. O titulo deste segundo artigo, mais que uma paródia ao famoso poema de Drummond, é uma alusão a um destes momentos-chave, que nunca está presente nos livros e atas históricas, apagados da lembrança da maior parte da sociedade; mesmo tratando-se de um marco único em um processo social que, ao partir de um determinado segmento e tendo como foco o mesmo grupo, acaba por atingir indiretamente a totalidade das construções e interações sociais.
Mesmo correndo o risco de parecer -ou, de fato, ser- por demais acadêmica, gostaria de apresentar um recorte de jornal como introdução pertinente(uma boa fonte é sempre bem-vinda):

"De repente, o camburão chegou e o clima esquentou. Três das mais descaradas travestis - todas em drag - foram empurradas para dentro da viatura, junto com o barman e um outro funcionário, sob um coro de vaias da multidão. Alguém gritou conclamando o povo a virar o camburão. Nisso, saía do bar uma sapatona, que começou uma briga com os policiais. Foi nesse momento que a cena tornou-se explosiva. Latas e garrafas de cerveja começaram a ser atiradas em direção às janelas e uma chuva
de moedas foi lançada sobre os tiras..."
(2)



Observemos os fatos: havia na decada de 60 vários bares destinados então ao segmento GLS no bairro novaiorquino de Greenwich. Era bastante comum e corriqueiro (na verdade uma norma) que houvessem batidas e inspetorias policias nestes lugares, por uma séries de pretextos- geralmente falta de licença para venda de bebida alcoólica. Estas intervenções geralmente acabavam com o fechamento do estabelecimento e apreensão das bebidas, e de "todos os que se encontravam
travestidos". Na madrugada do dia 28 para 29 de junho do ano de 1969, porém, ao praticar o ato já costumeiro e prender alguns travestis (3),num bar da região chamado Stonewall Inn, a força repressora teve uma grande surpresa: os clientes do local resolveram resistir em solidariedade aos amigos. Logo o bairro transformou-se um palco-de-guerra, quando os homossexuais e trangêneros
resolveram armar barricadas e, no ápice da revolta, prenderam os policiais dentro do proprio bar e passaram a incendia-lo.
Os soldados conseguiram a muito custo escapar, mas, ao voltar no dia seguinte, encontraram uma série de pichações e cartazes pedindo, pela primeira vez na historia, respeito e igualdade de direito. Tal episódio tornou-se conhecido como "A Batalha de Stonewall" ("Stonwall Riot") e é o mais significativo ato da militância LGBT, ao passo que marca oficialmente o inicio de um movimento organizado. É por isso que o dia 28 de junho é mundialmente saudado como Dia do Orgulho,
porém um dia de conscientização e confronto, não à mesma maneira de 69, pois mudou-se o contexto.
Mas ainda há muito espaço para conquistar. Ainda há muitos pedaços que restaram dentro de nós daquele pequeno e ao mesmo tempo enorme Muro de Pedra do suburbio de Nova York.

NOTAS:
1-Artigo apresentado no jornal "O Grito" do CAHIS (Centro Acadêmico de Historia) da UFPR, edição de nº2, Novembro de 2008.
2-Trecho do jornal "Village Voice", por ocasião do fato.
3-ha alguns relatos que indicam que o momento da "explosão" do conflito teria sido mais exatamente
um comentario preconceituoso em relação à atriz Judy Garland, um icone desta população especifica de então